quinta-feira, 5 de setembro de 2013

História do tempo


Jogo cartas com minhas sete vidas e acendo velas para aqueles que morreram debaixo das unhas dos seus pés. Eles construíram caravelas para descobrir o nosso continente. O rei pediu independência da colônia para que você me encontrasse. Os engenhos faliram e deram liberdade aos negros para você estudá-los e entender que fui eu a sua princesa Isabel. Até as letras do alfabeto chinês você recriou em quadros de Picasso para me fazer entendê-lo. Falhei. As folhas do nosso outono queimado partiram-se em canções de carnaval. E eles dizem que no céu, tudo se perdoa. Eu não devo pertencer ao céu ou aos quadros de Picasso. E você continua preso no porão de um navio negreiro que o levou ao fundo do Atlântico para desenhar o alfabeto em quadros de outro monarca cuja filha você irá desposar.

Hoje o seu desenho é quase um vácuo. Você se derrete e esmorece em mim. Seus dedos finos não deslizam mais pelo buraco da fechadura para circundarem meu pescoço e me presentear com jóias que seu passado regurgitou. O lado esquerdo da cama está amassado, como se o seu fantasma ainda habitasse os meus lençóis frios. Eu não durmo mais. Seus pés caminham pelo corredor vazio e fabricam a brisa noturna que me deixa doente. Eu tusso o silêncio que suas unhas roídas costuraram e enxugo os lábios secos com os guardanapos que o seu esquecimento me ofereceu. A sua chave se perdeu no assoalho podre. A casa inteira cai aos pedaços. Só sobreviveu o mar e o meu corpo embalsamado nas tatuagens de um setembro infindável.

Eu danço em círculos pela cerâmica fria. As velas derretem e marcam o compasso da melodia frágil. Você vê tragédia nos olhos dos seres comuns. Eu só vejo melancolia nas lacunas dos que cabem em mim. Fecho e a porta e espero dormir. Mas a chave cai e as almas dos alforriados entram pelo espaço que você deixou, amassam o lençol e me sussurram um conto sobre o ópio e a Inglaterra e os deuses do Olimpo e suas constelações com nomes dos signos que você tatuou na minha pele antes, muito antes de eles saberem.

Hoje a crosta fina que se formou no recife do nosso soluço quebrou. O navio não aporta se eu fecho os olhos. Estarei sempre afundando se a música não acabar. Seus olhos crescem em ordens de grandeza menores que os sinais de fuga dos mortos na última queda de avião. As caravelas que você escolheu para me deixar podem estar nos portões do inferno. Quero que o mar engula o que nem você foi capaz.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Castanho Claro


Você se ergueu numa manhã de outubro, quando as cores padeciam em tons claros de um castanho mórbido. As portas dos armários estavam fechadas e as chaves giravam em seus dedos como troféus. Você sorria e punha leite em xícaras para ninguém. No lanche da tarde, esperaríamos visitas dos fantasmas que você matou. As costas de suas mãos marcam minhas costelas. Eu me contraio e deixo que as ondas esfolem suas pernas. Estamos de volta ao local onde nós enterramos os pequenos caixões das filhas que você não quis ter, dos ossos que você não quis roer, das cores com que você pintou com seus dedos aleijados.
Eu lhe observo mover os olhos ao meu colo. Há ali as sardas que um dia as pontas dos seus cigarros amaldiçoaram. Deitamo-nos no sal que nos tinge de branco gelo e fechamos os olhos, sem dar-nos as mãos. Meu vestido pende e os botões afrouxam-se. É natural que todos os meus poros clamem por suas unhas. Hoje elas estão claras e confundem-se com a brisa fria daquela mesma manhã. A natureza gira em círculos incompletos, você grita e eu fujo, e o ciclo termina com suas cinzas sendo deixadas soltas à soleira da minha porta fechada.
Nós juramos que casaríamos no outono. Suas mãos se fechavam nas minhas, você implorava por solidão e eu me agarrava às mangas das suas roupas. Meus olhos corroíam as sobras do seu desapego. Até mesmo a pintura velha daquela construção reclamava nossas mentiras e deixava-se consumir em si mesma. Era tarde, Caleb. Queimar cigarros nos pulsos jamais me faria ficar, exceto, talvez, o sangue que sujava sempre os seus olhos quando eu lhe queimava em fotografias velhas.
– O que temos a ver com a vida dos outros? – Seguro-lhe os ombros, caminhando mais fundo no precipício aonde seu corpo me atrai. Você se desmancha. Há sempre um quê de ilusionismo nos seus atos, na forma como suas pestanas se dobram e se reclinam ao pesar das minhas. Eu me lembro do pó e das formas que desenhávamos na areia fina. Eu me lembro dos seus poros todos contraídos quando eu lhe tinha nas mãos. Eu me lembro dos seus pedidos surdos, das suas tosses falsas. Eu me lembro do contorno do seu rosto enquanto virava a maçaneta da porta pela última vez. E então, não me lembro de mais nada. – Você me deixará esperando. Virão lhe buscar e eu ficarei aqui, desenhando sua pele fria em quadros que não o querem.
Meu dedo frio percorre o contorno do seu maxilar. Seus lábios pálidos conservam todo o cinismo que sua vida lhe ensinara. Seu sangue purificado pelo tom dos meus cabelos nos mesmos termos que nós negamos…
– Eu só me pergunto qual seria a sua desculpa dessa vez. – Eu desço as mãos e passo a língua pelos meus lábios secos. Todo o meu corpo treme quando eu sorrio. Os rasgos que contornam nossos olhos se contraem. Sua mão desliza e se afasta. A brisa encobre seu rosto com os meus cabelos. Você poderia fechar os olhos para que, somente dessa vez, eu partisse.
– Sabe o que me acalenta, Caleb? – E um dos meus dedos toca o primeiro botão do seu paletó escuro. Observo as ondas se aproximarem. A água nos engole como se pertencêssemos à natureza morta dos retratos que você pintou. – Não se pode acender cigarros nessa umidade.


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Mentira sua


Ela estava partindo. Seus pezinhos de cristal desencantando os degraus pequenos da escada de brinquedo. Os homens observavam suas taças de cristal, percorriam vestidos e bustos e partes deslocadas de um soneto cruel que Deus inventara para nos perturbar. Ela havia bebido mais que dois dedos de uísque; fumara os três cigarros que prometera à doença dos pulmões; esquecera-se dos óculos de grau antigos que vovó lhe pedira para guardar no bolso secreto do vestido. Estávamos aguardando aquela hora da madrugada em que o chão treme de leve e você não consegue se conter e precisa se ferir. Os pezinhos de cristal quebrando o meu silêncio, forçando um pedido de desculpas que vinha sempre acompanhado de muitos motivos. Mas ela sabe. Ela sabe que eu jamais aprendi a perdoar.
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Eu via amoras escorrendo pelos seus dedos crus. Você, em seus vestidos alvos, me rondando o corpo, sussurrando o que ninguém mais podia escutar. Você enlouquecendo minhas vontades com ideias do que eu jamais poderia fazer. Você me prometendo voltar quando sabia não poder livrar-se do que lhe corrompia, e não era ferrugem, não era umidade, não era ruído malévolo algum. Era você. Você criando mentiras que ronronavam doçuras nas pontas dos dedos, escrevendo sonetos com palavras que nunca existiram, com juras de amor que ninguém fez. Você pendurando roupas no varal que mamãe se esqueceu de cortar quando partiu. Você prometendo ficar.
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Mamãe me dizia para ficar calado quando as visitas chegassem. Eu gostava de enrolar o vestido dela nas minhas mãozinhas pequenas, cantarolando a música que ela escreveu no espelho naquele dia em que choveu como o diabo e Margareth ainda não havia chegado. Eu costumo me lembrar de coisas que ninguém mais lembra. Como quando cortei as pontas dos dedos com as agulhas, que vovó esquecia constantemente no sofá, e desenhei no copo de Margareth o rosto de suas bonecas de pano.
Mamãe dizia que eu não me comportava bem. Dizia que eu viveria de escritos velhos, que eu era um desperdício da tinta de Deus. Ela enrolava cigarros fininhos e os fumava silenciosamente na varanda vazia do seu quarto. Eu tossia e enrolava as mãos no seu vestido longo. Estava chovendo.
Margareth lia poesias para mim quando eu não conseguia dormir. Sua voz era fininha e mamãe batia palmas quando ela dançava em seus sapatinhos cor-de-rosa. Ela gostava de colher amoras estouradas no fim da tarde, quando eu não havia ainda desistido de desenhar os cigarros que mamãe fumou sem me dizer. Ela me dizia que eu seria muito bonito quando crescesse, dizia que eu seria a criatura mais linda que ela já havia visto, mas ela mentia. Pois seus passarinhos coloridos eram leves e sutis e eram lindíssimos quando o sol batia no fim da tarde em suas gaiolas prateadas. Eu invejava os passarinhos que podiam morrer em seus dedos finos sem quebrar o silêncio dos seus pezinhos de cristal... Margareth partiu há tanto tempo, mamãe.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Amoras



São os escombros do silêncio que me ferem mais. Eu rezo aos rostos vermelhos nas amoreiras finas que colorem o precipício do seu mundo. Você se move com cautela, encurva os ombros, enfia em mim as costelas de Adão e sorri. Vejo os prenúncios da melancolia em ondas serenas penetrar os seus gestos. É quase como se tocasse para mim.


Essa casa e os dois dedos de tinta que usaram para cobrir a culpa. Você deitado no sofá, escondendo cigarros queimados em meias velhas. O lago cinzento de inverno e os três fios de cabelo que eu arranquei para me lembrar. São pequenos enigmas que o seu vazio não entenderia. Os dedos que você usa para escrever a primeira confissão foram os primeiros que eu queimei. Mas disso você esqueceu. O piano estava sujo da última vez que nós fomos lá. Fazia tanto frio. Os móveis eram velhos; pareciam pequenos fantasmas a nos assistir cambalear pelo cômodo de mofo. Você se sentou primeiro. Descobriu logo que os acordes eram adequados e arranhou o meu pulso, convidando-me ao monocromático da sua música. Eu me afastei. Desenhei no pó a data, as amoras e os ângulos retos das feridas. O arranhão começou a sangrar quando você desistiu de tocar.


Eu via dois dedos dos alfaiates que costuravam suas roupas se perderem no tecido roto da sua blusa. Suas desculpas escorrem pelo meu pescoço nu. Você, elevado, esguio, suporta o olhar doentio que eu lhe entrego e eu penso em enforcar-lhe com as fitas métricas de mil tons. Meus lábios devem ter-se aberto já mais de três vezes, querendo questionar-lhe os sorrisos, querendo possuí-lo diante de todos aqueles que lhe congratulavam. Eles não sabiam que as marcas nas suas costas eram minhas? Que os pássaros que nós matamos eram fruto do pacto que fizemos com as folhas secas daquele outono frio? Baixei a vista aos azulejos que decoravam o chão sujo e, finalmente, sorri.
– Sua gravata será vermelha… eu imagino…?
Do sangue que você não cortou. Das fitas soltas que os braços das moças deixavam sempre a sobrar na mesa-de-cabeceira. Dos olhos enraivecidos de mamãe nas noites de lua cheia. Da casa que nos acolheu. Da marca que os pregos das escadas deixaram em minhas costas. Das amoras meio apodrecidas com que você uma vez coloriu minha boca sob a sua. Dos cabelos. Dela.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Natureza morta - Parte 1


Sôfregos sons vinham da noite cadente. Cores de tons mórbidos refletiam e inflamavam minhas íris derrotadas. Eu caminhava por entre as árvores mais altas com medo de ser vista. Meus dedos trêmulos se escondiam na capa de chuva que o outono me dizia para não usar. As raízes conversavam com os meus sentidos e desatavam nós dos dedos de seres sem nome. Eu cria em mentiras antes mesmo de me revelarem qualquer das verdades do mundo, mas meu sangue era sujo e eu me manchava facilmente. Quando criança, feri-me em cacos de vidro e um deles jamais partiu. Minha mãe me dizia que eu deveria gostar da cicatrizes e decorá-las com carinho. Então, eu o fiz, decorei-as com outras e outras mais.

Parecia haver um sorriso triste nas folhas dos Plátanos naquele dia. Todos os seres do mundo partiram e as catacumbas que as nuvens cavaram no céu destinavam-se somente a mim. Eu perpetuaria sozinha no mundo que criei em silêncio. Os frutos apodreceriam intocados – e então eu o vi.
Ele padecia sob uma árvore alta. Seus cabelos se misturavam à parte escura e queimada dos troncos espessos. Os olhos cinzentos, porém, resplandeciam e quase me cegavam. A insanidade que o contornava era insondável e eu desejei conhecer-lhe o âmago, pois – apesar do sorriso fino nos lábios – ele era a criatura mais triste de todo o meu universo. O mês era agosto. As folhas caíam para enterrar o seu corpo, quando eu é que estava morta e elas não sabiam.

Caminhei à beira do lago, buscando não assustá-lo com meus passos incautos. A água se movia sob a brisa leve e me hipnotizava. Lembrava-me dos corpos que a chuva veio levar na noite em que tudo ruiu. E o silêncio me causava medo. Se eu era prisioneira das lembranças dos outros, por que, então, eles todos não entendiam?

Não tenho certeza se ele me notou antes que eu o visse. Seus olhos de criaturas cegas me prenderam por dois indiscretos segundos. Entreabri os lábios tolamente, apenas para emitir um ruído rouco e frágil. No fim, eu nada pude fazer senão me ajoelhar à sua frente e sorrir. O mesmo sorriso das folhas dilaceradas com as quais o outono nos presenteara.

– Fugindo?

Mas de quem, meu anjo? Os homens maus não mais lhe vem perturbar o sono nas noites em que a chuva é forte o suficiente para abafar os seus gritos. Quis perguntá-lo se ele também gritava, mas baixei os olhos e admirei as pedras enfileiradas ao seu redor: um altar erguido para nossa transgressão.

– Meus irmãos quiseram brincar sozinhos e eu acabei me deixando ficar. Papai disse que eu devia ir à igreja reparar meus pecados. Mas eu gosto deles. Acha que eu devo ir? – Ele me disse, desenhando na terra úmida que o cercava.

Seu pai? Uma pequena criatura como você não caminhou sozinho por todo esse tempo? Não nasceu das rosas ou dos pequenos acentos que Deus pregou em minha pele antes que eu concernisse?

– Não. – Respondo, sem me dar conta.

Há algo nos seus olhos que se confunde com a cor plácida do lago. Você é feito de todas as formas das naturezas que compõem o precipício do mundo. E eu estou tomando a sua mão apenas pela fagulha de voz que você resfolegou. Mas a história começou quando a pétala tocou minha mão e eu sorri. Você percebera e eu sabia. Porque age tão inocentemente, pequeno fantasma? Suas cores se confundem com os pálidos tons do outono, entrando em putrefação, e há muito mais que melancolia nas notas que você sussurra.

– Vê os pássaros? – Estico os dedos e completo o seu desenho feito no chão. Parece-me gentil ou seria um tanto tolo. Acredito que se falasse outra vez, você desapareceria, mas arrisco mesmo assim. – A natureza não peca. Como poderia?

E me descubro sorrindo discretamente à tarde fria. A pele dos meus lábios dói e talvez você descubra que eu não pertenço ao seu espaço, por isso afasto o dedo da sua arte no chão e acabo por arruiná-la com um descuido dos dedos que tremem, negando o meu pedido por absolvição. Os deuses estão mortos. Só nós sobrevivemos.
Há uma pequena mancha de sangue no extremo do seu rosto. Parece-me sussurrar que posso ficar. Há quanto tempo existe, senhor? A eternidade custa a ouvir minhas dúvidas, o tempo não corre aqui. É o seu santuário de galhos secos e água fria que eu maculei.
Eu lhe observo responder ao vento com solitários movimentos, que parecem suavizar qualquer malefício que os corpos dos outros trouxeram. É o fim de toda honra e glória, pois em suas mãos, até mesmo as estaçõe silenciam. Posso sentir a água se mover e não me atrevo a olhá-lo nos olhos outra vez. O azul de vidro e prata resplandece e morre em si mesmo, é ferido por folhas marrons que, molhadas, afundam. Sou como as folhas e você já me engoliu.

domingo, 9 de outubro de 2011

Para lhe reconstruir;

Como funéreo prenúncio, a brisa fria lhe carrega os cabelos para longe do meu rosto. Não vê que suas unhas estão sujas de areia e já não suspendem meu medo acima de nossas expectativas? Acabo-me de chegar à marca que seu corpo deixou na sombra morta de uma gramínea. Você está sempre partindo e assim se foi novamente com a onda e sua espuma, cor de vazio e tempestade fraca. Todo o cenário conspira sobre nós e os solstícios que não nos pertencerá jamais. Você está sempre partindo.

O vulto das vestes frouxas remanescem imitando o movimento que faria o meu braço se eu ousasse lhe tocar. Mas desfaleceria aos meus pés e seria carregada para embalsamarem seus ossos com o sal que se prende em minhas sardas queimadas. É um delírio, minha querida, tanto de leveza quanto de surradas lembranças encostadas em uma cama que sequer existiu. É meu dedo que se enfia em seu cabelo (a sua nuca fria e contraída) e lhe põe de pé. Estou lhe desafiando a despedaçar a prometida eternidade de nossos passos em areia molhada. Apague-as, se quiser. O que eu tenho está aqui, esvoaçando talvez enquanto você se esquece de que a maré está enchendo.

Meus olhos têm medo e eu sei, mas os seus... os seus têm sede e talvez, embriagados, possam se afogar no insalubre castanho dos meus. Escolha o mar, querida, parece-me menos fatal. Mas eu dei um passo à frente e nossas bocas salgadas quase se tocaram – não é essa a hora em que você desaparece?

– Serei sempre assim? – Meus murmúrios são abafados pelas ondas que quase alcançam nossos pés descalços agora. – Agarrado ao seu vestido enquanto você se afoga no lago que eu escolher?

Talvez por impulso ou pelo frio, minhas unhas escorregam da nuca às suas costas e tocam a alça fina do vestido branco que você escolheu para se casar com a minha enfermidade. Afasto-a pelo comprimento do seu ombro; faz frio e eu tremo sem mais me esconder dos seus olhos impiedosos. Quando foi que você decidiu que eu morreria em seus braços? Talvez quando a maré encher, você possa...

Os dedos ainda tecem as roupas que você teimou em rasgar. Não vê que visto os trapos que você abandonou nas gavetas daquilo que um dia chamamos de lar? Eu estou aqui agora, você pode me tocar, se quiser, mas meus contornos são difusos e isso pertenceria a um sonho se eu não soubesse que sou incapaz de confundir o seu cheiro com o de qualquer outra criatura em vida.

O mar tenta nos afogar (ou é apenas o seu corpo que me empurra em direção às ondas altas?). Meus olhos gritam para que você abra os seus e me enxergue e me faça suplicar novamente pelo vinho que embaçou nossos dedos e nos delatou ao mundo. E o mundo todo aqui definha. Não dói. Não dói quando suas unhas tentam me convencer a ficar (como se algum dia eu ousasse partir) e o frio dos seus dedos encobre a palidez suave do meu antebraço. Sua voz lhe sai suave, apesar de conter impropérios. Ouvindo minhas preces, o vento é quase capaz de lhe enforcar.

– Não me parece mais tão viva. – Meu indicador perpassa sua jugular, os batimentos contaminam meu tato e nós dançamos em um compasso amaldiçoado. – E se eu lhe deixasse partir? Iria convidar minhas gêmeas de alma para a sua cova? Ou desmoronaria?

Minha mão passa rápida às costas do seu pescoço e lhe puxa para um beijo que sufoca em si mesmo. Eu abro os olhos. Sua pele ainda é lisa mesmo depois dos seus dezessete suicídios em sequência. Você penetra em minhas feridas e as faz arderem, abro os lábios no desejo de gritar, mas – em oposição – sorrio, como que aceitando sua sina que há muito embriagou a minha.
Ontem dediquei a noite a você. E adivinhe só. Acabei chorando quando o sol nasceu. Gostaria de saber por quê eu nunca escolho os finais felizes.

– Leve-me embora.

As ondas convergem em roncos surdos. Não se divide mais a terra da água cinzenta; o céu parece refletir a sua expressão. Por um momento, eu penso que poderia tocar as nuvens. Você me arranha e me traz de volta. Acho que está começando a chover agora.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Do soldado que fui

Acordou pensando estar doente. Os olhos vermelhos denunciavam a noite em claro. Mas era apenas febre. E febre do que? De querer e de não poder tocar. De um dia rasgar os olhos para não mais ver o verdadeiro cinza de que era feito o mundo. A febre das feridas entre os dedos, a febre que afligia os sobreviventes da guerra, a febre inebriante do sofrer calado. Percebe?
Um dia lhe contaram sobre as flores amarelas, de mil cores que ele não poderia ver. Um amputado, mudo e daltônico sobrevivente. Mas havia a febre que o consumia e o fazia diferente. Os olhos vermelhos das madrugadas sem fim herdados pelos filhos doentes. O mundo em escalas de cinza, variando da prata ao resto que a chama apagada do fogo deixava na lareira em noite fria.
Era tarde, era tarde, ele sabia, mas havia algo. Talvez a febre. Sempre a febre a crepitar em seus ouvidos queimados. Havia algo que o fazia arrancar os cobertores e andar pela casa. A arma na mão, procurando pelos fantasmas da cor da cinza. Um som, um tiro. Cristais pequenos pelo chão. Foi a primeira vez que viu o sangue. O sangue cinza de seu filho mais novo. No chão. E a febre que não morria. Só os outros... Só os outros. E o seu nome enclausurado em veias mortas. Pobre soldado, sozinho, solitário. Soldado.
Murcharam, então, todas as flores e ao cinza sucumbiram. Fecharam-se os olhos e da lareira se ouviu apenas o som do fogo se apagando. O fogo que a tudo consumiria, exceto - sempre e claro, claro como o cinza de minhas mágoas - a febre.